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Olhar de uma ex-paciente de câncer de mama sobre o ano da covid-19

São Paulo, outubro de 2020


*Por Marisse Bonfim
 

O Outubro Rosa é uma campanha anual que acontece no mundo todo, cujo objetivo é voltar o olhar da mulher e da sociedade para a importância do diagnóstico precoce do câncer de mama, já que, uma vez detectado no início, as chances de cura são de 95% dos casos, segundo pesquisas.  

As abordagens da campanha são as mais diversas, desde iluminação de prédios na cor rosa, mutirão de mamografias, palestras sobre qualidade de vida, abordagem do autoexame, até discussões mais profundas, como direitos dos pacientes com câncer. Por exemplo, a Lei 12.732, que estabelece 60 dias para início do tratamento oncológico no SUS e a aprovação do Projeto de Lei (PLS) 6330/2019, que amplia o acesso à quimioterapia oral para usuários de planos de saúde, além de discussões de cunho social, como o direito ao atendimento humanizado ao paciente, em especial os que estão em tratamento para o câncer metastático.

Neste ano, a Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM) lançou o movimento de conscientização Quanto Antes, Melhor. A ideia é chamar a atenção das mulheres para a adoção de um estilo de vida saudável no dia a dia, com prática de atividades físicas e boa alimentação, para evitar doenças, entre elas, o câncer de mama. Além disso, reforçar que há muita vida após o câncer de mama e que o cuidado com a saúde feminina deve ser olhado com atenção, principalmente neste momento em que diagnóstico e tratamento foram prejudicados e ainda estão sendo retomados por causa da pandemia de covid-19.

Já o Instituto Vencer o Câncer, por meio de uma websérie produzida pelo Dr. Fernando Maluf, “Para a Saúde não Existe Quarentena”, chama a atenção para o fato de que com a Pandemia da covid-19 os casos de câncer em estágio avançado irão crescer esse ano. Muitas pessoas deixaram de fazer seus exames de rotina e muitos pacientes oncológicos abandonaram os tratamentos por conta própria, o que pode resultar em um aumento significativo de diagnósticos de câncer em estágios avançados nos próximos anos.

Se por um lado a pandemia da covid-19 mostrou uma vulnerabilidade do sistema de saúde, por outro trouxe à tona pontos de reflexão, como os ponderados na campanha: a necessidade de estar em dia com a saúde e um olhar mais aguçado para si próprio.

Caso real

Quando passei pelo câncer, em 2017, durante um ano de tratamento vivenciei e compartilhei com pacientes e ex-pacientes situações que, ao começar a pandemia, vi refletidas no contexto atual, mas que até então pareciam invisíveis para a sociedade de modo geral. Situações que afloram no mês do Outubro Rosa e adormecem no resto do ano.

Os aspectos que tornam ex-pacientes, pacientes oncológicos e a sociedade mais próximos diante da pandemia são: a resistência, resiliência e ressignificação da vida. Analisando meu ano de reclusão para o tratamento, e o sofrimento da sociedade de modo geral pela pandemia, pude traçar alguns paralelos:

Acesso à saúde: a pandemia de covid-19 demonstrou uma fragilidade no sistema de saúde, expondo ainda mais os habitantes de pequenas cidades, cujos hospitais nem sequer têm leitos de UTI, o que dirá respiradores. Para o paciente oncológico, em especial aquele que depende do SUS, a luta por um tratamento digno e humanizado atravessa barreiras geográficas. Assim como os respiradores para a covid-19, há questões que vão desde os equipamentos para um diagnóstico precoce até hospitais que disponibilizem o tratamento. Pacientes têm de viajar quilômetros para fazer uma sessão de quimioterapia; já outros morrem por falta de acesso ao tratamento específico para seu tipo de câncer.

Aprender a lidar com perdas em momentos difíceis e delicados: assim como o câncer, que tem um período longo de tratamento, a pandemia tem se estendido mais do que esperávamos. Nesse quase um ano, temos visto pessoas da mesma família se infectar e adoecer juntas: ao passo que uma adoece, outra falece. A realidade do paciente oncológico não é muito diferente, porém desconhecida para muitos. O tratamento para o câncer é longo. Nesse período, os cuidadores acabam se fragilizando, e as perdas naturais acontecem. Assim como no meu caso, em que perdi meu pai de infarto no início do tratamento, ouvi vários relatos de pacientes que sofreram perdas ou tiveram outro ente próximo descobrindo um câncer junto com o tratamento.

A incerteza pelo amanhã (ansiedade): quando recebemos o diagnóstico e iniciamos o tratamento para o câncer, é um mundo desconhecido. Não sabemos aonde vai dar. Assim como quem se contamina pelo novo Coronavírus. O medo do desconhecido, a incerteza se o tratamento será eficaz, se o respirador será eficiente, se a pessoa vai sair viva e aquela dúvida: será que estou livre desse vírus?

Assim são as fases do tratamento do câncer. Cada um a seu modo: cirurgias, quimioterapia, radioterapia, e sempre aquela dúvida: será que estou livre desse câncer? Lembro-me de que, quando fiz a primeira químio, passei a noite em claro esperando passar mal, esperando sentir as reações que tinha lido na internet e visto nos filmes. Mas não senti. Tive outras, em outros momentos, e assim são as reações: desconhecidas e inesperadas, à medicação e à doença.

Renda reduzida: na pandemia, parte da população teve a renda reduzida, houve flexibilização da jornada de trabalho e desemprego. Pequenos comércios foram devastados e as pessoas se reinventaram para sobreviver financeiramente. Quando uma pessoa saudável, em plena atividade, se vê diante de um câncer, passa por uma cirurgia, passa pela segunda, na maior parte das vezes recorre a férias, licença, depois auxílio-doença (INSS).

Em alguns casos, a renda cai absurdamente. A questão financeira em torno do câncer é velada. O que me garantiu paz para parar por um ano foi meu equilíbrio financeiro e um seguro que fiz que paga o prêmio em vida, para casos de câncer relacionado à saúde da mulher.

Reposicionamento no mercado: já existe uma discussão latente de como será o mercado pós-pandemia, as posições e os postos de trabalho, enfim, como serão direcionadas as carreiras. Já o paciente oncológico, quando termina o tratamento e volta a trabalhar, muitas vezes não tem mais nem a cadeira em seu lugar. Empregadores não sabem que o colaborador ainda está totalmente abalado psicológica e fisicamente. Precisa de ajuda para se reestabelecer. Pouquíssimas empresas têm a sensibilidade de olhar para esse momento de reinserção.

Aproximação ou perda de familiares pela convivência: a pandemia descortinou uma sociedade de pessoas se descobrindo em seus próprios lares. Casais fortalecendo vínculos, e outros se separando. Para a mulher com câncer, esse é um ponto muito discutido. Muitas são abandonadas pelos companheiros em pleno tratamento. Muitos cuidadores se afastam do paciente. Em outros casos, famílias se fortalecem, infelizmente em menor proporção.

Cuidados extras com a imunidade e higiene pessoal: uma pessoa em quimioterapia, na maioria das vezes, tem a imunidade comprometida e necessita cuidados extras com a alimentação. Lembro-me de que não podia comer fora de casa durante o tratamento, em especial comida crua. E adoro salada. Foram 11 meses comendo em casa. Sem paladar. A maior parte dos pacientes em tratamento passa por muitas situações de restrição. Quantas vezes vocês já viram alguém careca e de máscara no supermercado antes da pandemia? Então, era alguém passando por um tratamento de câncer.

Vaidade: em tempos de pandemia, qual o preço da vaidade? Lembro-me de ter ouvido recentemente queixas de famosos e anônimos do tipo: “Faz quatro meses que não faço uma escova, deixei as sobrancelhas crescer, não faço unha faz seis meses!” Choque na mídia, porque atrizes assumiram os fios brancos. E, quando uma paciente inicia um tratamento de câncer? Perdemos cabelos, sobrancelhas, em algumas ocasiões caem as unhas; algumas perdem ou seios, outras, parte deles; emagrecimento, inchaço. E o que fica de lição?

Momentos de introspecção: diante de todo esse cenário, tanto tempo em casa, eu fiquei quase um ano em tratamento devido a complicações. É tempo suficiente para testar suas crenças, sejam elas quais forem. Conheço ex-pacientes de câncer que mudaram de profissão, que fizeram um período sabático, que decidiram ter um cachorro, ou decidiram não ter. A pandemia nos trouxe também esse tempo de introspecção e reflexão.

O que esses paralelos trazem de reflexão para o Outubro Rosa e a proposta da campanha de 2020 – Quanto Antes Melhor? Para mim, alguns pontos são fundamentais:  precisamos ficar em dia com a saúde física, espiritual, emocional e financeira, pois nunca sabemos quando seremos acionados. Que a adoção de um estilo de vida saudável é regra, e não condição. Que não estamos “medindo” dores! Cada um sabe a dor de ser quem é. E, por fim, o mesmo olhar de mobilidade para todas as questões que estão sendo levantadas com a pandemia, da humanização diante do caos, precisa ser dado paciente oncológico.


*Marisse Bonfim é coordenadora fiscal da Hughes.

 

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